O tema da Iniciação à Vida Cristã se coloca dentro da preocupação missionária que perspassa hoje toda a Igreja, preocupada com a descristianização galopante tanto em paises de antiga (Europa) como de nova cristandade (Brasil). Não é um tema novo, mas desdobramento do Diretório Nacional de Catequese (2005), de Aparecida (2007: uma Igreja em estado de missão), da Missão Continental (2008)... e tantos apelos atuais da Igreja.
Por Iniciação Cristã se entende o processo pelo qual alguém é incorporado ao mistério de Cristo Jesus; não se reduz à catequese, mas inclui sobretudo a ação celebrativo-litúrgica. A catequese é um elemento, o mais longo e importante, do complexo processo pelo qual alguém é iniciado à fé cristã. Teologicamente falando a verdadeira iniciação se dá na celebração dos sacramentos do Batismo, Eucaristia e Crisma, chamados justamente, a partir do século XIX, de Sacramentos da Iniciação. Trata-se de uma iniciação que poderíamos chamar de sacramental. A estrutura catequética está em função dessa iniciação sacramental e vital.
De fato, pela doutrina do “ex opere operato” a Igreja professa que todo batizado é verdadeiramente incorporado em Cristo Jesus e começa a fazer parte de seu Corpo Místico, do Povo de Deus, da Igreja. No entanto, a expressão iniciação cristã passou a significar todo o processo pós-batismal percorrido para se chegar a esta profunda realidade da fé do ponto de vista experiencial e existencial. É a iniciação que, uma vez realizada sacramentalmente, faz com que a pessoa se conscientize, assuma e viva plenamente essa maravilhosa realidade da vida divina comunicada pelo mergulho (batismo) em Cristo Jesus.
2. Retorno à inspiração catecumenal
O complexo processo que, desde o século II, prevaleceu na Igreja para iniciar os novos membros nos mistérios da fé, recebeu o nome de Catecumenato: era um conjunto de pregação (primeiro anúncio), práticas litúrgico-rituais, ensino, exercício de vida cristã e acompanhamento pessoal que levavam à verdadeira conversão ao Evangelho e incorporação na Igreja. Com a chegada da Cristandade (séc. V, VI...), desapareceu o complexo processo do catecumenato, ficando de pé, até hoje, o momento do “ensino-instrução” com o nome de catequese, e em geral dirigida à crianças. De fato, a comunidade cristã e a própria sociedade (ou civilização cristã) exerciam o papel de catecumenato social. A primeira experiência fundante da fé vinha da própria família e até da sociedade cristã, de um modo geral. A preocupação ficava reduzida à instrução doutrinal: e essa foi a herança que recebemos da cristandade.
Hoje, com raras exceções, nosso povo não possui uma experiência de fé transmitida pela família, na convivência do dia a dia, e muito menos pela sociedade. Não vivemos mais a cristandade. É necessário um trabalho missionário, de primeiro anúncio, de evangelização no sentido mais estrito da palavra: anunciar Jesus Cristo. A catequese, tal qual a recebemos e conhecemos como atividade de ensino e transmissão da fé, por mais que tenha sido renovada, não consegue realizar sozinha a iniciação cristã. Os frutos e as estatísticas aí estão... e continuamos a batizar, crismar, distribuir a Eucaristia abundantemente...
Iniciar é introduzir, mergulhar... Batismo é mergulho e participação no mistério de Cristo morto e ressuscitado! Batizamos sim... com muito esforço de renovação da Pastoral do Batismo e dos outros sacramentos da iniciação: Eucarística e Crisma!... Mas, podemos perguntar: essa gigantesca ação pastoral-litúrgico-catequética, esses gestos sacramentais piedosamente celebrados e recebidos são realmente a transmissão e celebração de um mergulho vital no mistério de Jesus, de um encontro e compromisso pessoal com Ele e sua Igreja..?. Ou continuamos a insistir num mal entendido “ex opere operato” que permanece gerando uma multidão de batizados não evangelizados? Ninguém duvida que o batismo, celebrado e recebido com fé, é uma real iniciação ontológica e sacramental ao Mistério de Cristo. Mas, do ponto de vista existencial e experiencial nada acontecerá se não houver para esses batizados um autêntico processo de Iniciação à Vida Cristã.
Aparecida, com muita audácia, nos convida a “abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé” e a uma “conversão pastoral e renovação missionária...” (no. 375; cf 172-173; 11, 450...) [1]. Ora, assumir com seriedade, eficiência e eficácia o complexo e difícil processo da Iniciação à Vida Cristãé um esforço para colocar em andamento as arrojadas, corajosas e intrépidas propostas do Diretório Nacional de Catequese, de Aparecida, da Missão Continental... e tantos outros apelos que nos provêm de toda parte. Estamos diante de uma mudança de época: não se trata só de aperfeiçoar a catequese de adultos, jovens e crianças... mas de questionar todo o processo de transmissão e educação na fé que subsistem na Igreja nestea época de grandes desafios, e ao mesmo tempo de grandes oportunidades. A oportunidade é justamente colocar em prática o que desde o Concílio, mas sobretudo nos últimos anos, se vem falando sobre o retorno ao catecumenato e à dimensão catecumenal da catequese.
O documento da V Conferência faz uma clara distinção, mas também uma profunda relação entre a Iniciação à Vida Cristã, como primeira “catequese básica” na forma de “iniciação cristã” e a conseqüente “formação permanente”. Assim se expressa: “Assumir esta iniciação cristã exige não só uma renovação de modalidade catequética da paróquia. Propomos que o processo catequético de formação adotado pela Igreja para a iniciação cristã seja assumido em todo o Continente como a maneira ordinária e indispensável de introdução na vida cristã e como a catequese básica e fundamental. Depois, virá a catequese permanente que continua o processo de amadurecimento da fé...”. (Ap 294) [2].
Isso significa que, aquilo que hoje tradicionalmente denominamos “catequese”, deve ser conduzido conforme o processo de iniciação, que é muito mais exigente e comprometedor, e não apenas “prepare para os sacramentos”, que infelizmente, em nossa realidade, tornam-se freqüentemente “sacramentos de finalização” ou seja, são os últimos contatos que muitas vezes, jovens e crianças têm com a Igreja (a crisma muitas vezes se degenera em “sacramento do adeus”!).
Estamos acostumados a falar de iniciação ou do RICA (livro litúrgico que traça o percurso para se chegar ao Batismo) somente tratando-se de adultos não batizados. Hoje já não é assim. O exigente e muito eficaz processo iniciático hoje é proposto também para batizados (ou seja, já iniciados sacramentalmente, mas não experiencialmente), e mesmo para quem já fez a Primeira Comunhão Eucarística e foram Confirmados, mas não foram suficientemente evangelizados e iniciados na fé.
3. Sem deixar a dimensão social, aprofundar a dimensão mística
Podemos também refletir que, logo após o Concílio, a Igreja de um modo geral, e sobretudo no Brasil, foi guiada e impulsionada por todos os documentos conciliares, mas sobretudo pela grande documento Gaudium et Spes: diálogo com o mundo, vivência do Evangelho a serviço da transformação da humanidade, de um modo especial em favor dos pobres, com suas conseqüências sócio-políticas... daí nasceu a Teologia da Libertação, as práticas de uma pastoral transformadora e voltada diretamente para a situação concreta sofrida e desumana da maioria de nossos fiéis, para o engajamento sócio-político em nome do Evangelho... Nossa Conferência Episcopal ficou beneficamente marcada por essas grandes intuições do Concílio, sem deixar, naturalmente, tantas outras reformas conciliares!
No contexto do Concílio o documento Ad Gentes, como o próprio nome indica, era pensado para as “missões”, para povos não cristãos que não conheciam a luz do Evangelho... Sem perder essa característica de anúncio do Evangelho para povos com nenhuma tradição cristã (missão nas fronteiras), a Igreja hoje percebe que precisa anunciar o Evangelho de um modo explícito e renovador, para povos de antiga cristandade... Aqui no Brasil, embora não sejamos de tão antiga cristandade, tomamos consciência também de que precisamos nos transformar em “terra de missão”; precisamos ser Igreja missionária, no sentido mais próprio e exato da palavra. Disso nos fala o projeto da Missão Continental e todo o Documento de Aparecida.. Nesse contexto, sem deixar de lado as conquistas à luz da Gaudium et Spes, precisamos retornar ao documento que ficou um pouco esquecido no pós-concílio, o Ad Gentes, pois, pensávamos, eram orientações mais para “países de missão”... Missão é aqui nos grandes e pequenos centros urbanos, missão é para grande maioria de nossa população que cada vez mais se afasta do Evangelho, deixando-se influenciar por uma sociedade longe de Deus, consumista, materialista... Ora, dentre os documentos conciliares, Ad Gentes, juntamente com outros, foi o que pediu a restauração do Catecumenato como metodologia própria para conduzir, aqueles que optam pelo Evangelho, a uma verdadeira iniciação à vida cristã. Portanto, missão, primeiro anúncio, catecumenato, Iniciação à Vida Cristã, são conceitos e práticas que começam a fazer parte de nosso dia a dia...
Estamos diante de uma verdadeira mudança de época, diante dos desafios de um novo paradigma; não se trata, como dá a entender o recente Diretório Nacional de Catequese, de fazer algumas alterações, renovar superficialmente nossas tradicionais práticas catequéticas, fazer-lhes uma maquiagem... trata-se de mudanças radicais. Precisamos mexer na própria estrutura da tradicional “preparação para os sacramentos” e encarar os desafios de um novo modelo evangelizador-catequético, enfim, um novo paradigma... sem isso, não haverá “conversão pastoral”, nunca haveremos de “abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé”. (DAp 375)
É nesse contexto que a Igreja se debruça hoje sobre a Iniciação à Vida Cristã. Não se trata só de iniciação cristã, como tradicionalmente se diz, mas sim de “iniciação à vida cristã”, expressão que procura traduzir a comunicação de uma fé que não se reduz à intimidade com Jesus Cristo, mas que tenha reflexos e influências vitais na própria existência, levando à participação da comunidade, que no seu conjunto, deve dar Testemunho do Evangelho.
4. O Estudo da CNBB 97: Iniciação à Vida Cristã
O esquema fundamental do Estudo da CNBB 97, Iniciação à Vida Cristã, fruto da última Assembléia e lançado durante a III SBC, entre tantas possibilidades, tomou como ponto de partida o insistente pedido de Aparecida: “Impõe-se a tarefa irrenunciável de oferecer uma modalidade [operativa!] de iniciação cristã, que além de marcar o que, dê também elementos para o quem, o como e o onde se realiza. Dessa forma, assumiremos o desafio de uma nova evangelização, à qual temos sido reiteradamente convocados” (nº 287). Acrescentando-se mais um elementos (por quê?), o texto ficou estruturado com esses 5 capítulos:
I – Iniciação à vida cristã: por quê? - Motivações
II –Iniciação à vida cristã: o que é? – Natureza
III – Iniciação à vida cristã: como? - Metodologia
IV – Iniciação à vida cristã: para quem? – Destinatários - Interlocutores
V – Iniciação à vida cristã: com quem? onde? – Agentes e Lugares.
Embora sejam categorias marcadamente distintas, entretanto elas se completam e estão intimamente relacionadas. Assim sendo, por vezes, ao tratar de uma delas, já se começa a falar da outra e vice-versa, como fica evidente no I capítulo. Pode parecer repetitivo, mas são realidades que não podem ser tratadas sempre independentes entre si.
Após reflexões e decisões da comissão encarregada de elaborá-lo, o texto foi redigido por cinco pessoas diferentes [3]. A seguir tentou-se unificar a redação num único estilo e assim, retornou à comissão que o reviu, corrigiu, complementou e documentou. Apesar desse esforço, ele ainda apresenta falhas e lacunas, repetições, imperfeições redacionais e conceituais Isso tanto do ponto de vista teológico, como litúrgico, pastoral, catequético e metodológico.
Após essa apresentação geral, vamos analisar o texto na sua estrutura e particularidades
[1] É interessante notar que em todo o texto de Aparecida aparecem 46 vezes as palavras “estrutura” ou afins, mas a maioria absoluta se refere às “estruturas sociais... injustas... de pecado...”. Apenas umas poucas vezes o termo se refere às mudanças de “estruturas dentro da Igreja” (e esse nº. 375 é uma delas...). É mais fácil falar para os outros!
[2] O texto original (4a. Redação, posteriormente modificado) era mais contundente: “Assumir essa iniciação cristã exige não somente uma renovação da catequese, mas também uma reestruturação de toda a vida pastoral da paróquia”. A frase, como está na versão oficial enfraqueceu a força do pensamento original, além de conter uma imprecisão gramatical, pois falta a segunda parte da frase: “...não só... mas também...”
[3] Para a primeira redação, o I capítulo foi redigido pela profª Therezinha Lima Cruz; o II pelo Pe. Luiz Alves de Lima, sdb; o III pelo Pe. Domingos Ormonde, com acréscimos substanciais de Dom Manuel João Francisco e Maria Ângela Zoldán Guenka; o IV por Ir. Marlene Santos, cf; e o V pelo Ir. Israel José Nery.
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1. MOTIVAÇÕES E RAZÕES: POR QUÊ INICIAÇÃO?
O cap. I se detém sobre a importância e urgência do tema, suas motivações: por quê é necessário hoje o processo iniciático? O texto parte da indagação sobre Deus e sua procura: o ser humano vive à procura de respostas sobre a vida e, no fundo, sobre si mesmo. A esse mistério a fé cristã dá uma resposta cabal; para dela se apossar e vivê-la, é necessário um verdadeiro mergulho no mistério de Deus e nas diversas dimensões da vida cristã; não basta uma síntese doutrinal, um cursinho rápido e nem mesmo uma catequese isolada de outros aspectos da vida eclesial. Não se trata de “aprender coisas”, mas de aderir conscientemente a um projeto de vida, de ter um encontro pessoal com Jesus Cristo.
Mais que as crianças, os adultos são os que precisam de um processo bem vivido de iniciação É uma necessidade religiosa, mas também antropológica. Entrar num novo projeto de vida, religioso ou não, requer um processo de passos sucessivos de aproximação. Não é de hoje que as religiões assim procedem, num processo que mescla vivência, conhecimento e celebração. Assim, a pessoa se deixa envolver pelo clima do mistério e passa a agir de outro modo no campo pessoal, comunitário e social, envolvido pelo amor de Deus. Ritos, símbolos e celebrações sempre fizeram parte da história humana (cf DNC 116).
Para sentir-se parte de uma tradição, povo, comunidade religiosa (e até de uma família) a pessoa precisa estar imersa no sentido de vida que caracteriza essa pertença. Também na tradição cristã encontramos essa maneira de sentir e atuar: o próprio Jesus assim procedeu: formou discípulos aos poucos através do chamado e convívio; houve etapa na missão, envio, aprofundamento...
No início da Igreja, pessoas aderiam à fé através de processos de iniciação tão bem feitos que sustentaram mártires e possibilitou a expansão do Evangelho por quase todo o mundo conhecido na época. Mesmo sendo uma minoria (talvez 10% do Império de Constantino Magno), os cristãos eram firmes o bastante para que o Estado, que a princípio os perseguia, os aceitasse com liberdade de culto, e mais tarde até os tornasse representantes da “religião oficial”. Não se consegue isso com cristãos só de nome. Foi preciso uma sólida iniciação, para vencer tempos difíceis.
Esse processo de iniciação ficou evidente, a partir do século II, com a estruturação do catecumenato: o objetivo era o aprofundamento da fé, como adesão pessoal a Jesus Cristo e à comunidade dos discípulos. Era o caminho ordinário para conduzir os adultos (e não crianças) aos mistérios divinos, à profissão de fé e à participação na comunidade. Seu período áureo foi entre os séculos III a V. Com o advento da cristandade, o catecumenato foi reduzido à Quaresma até desaparecer e ser substituído pelo Batismo de massa. Ser cristão começa a ser situação comum e abre-se a possibilidade do batismo ministrado às crianças. No século VI desaparece o catecumenato propriamente dito; catequese e liturgia se distanciam. A catequese, mantendo em geral sua característica doutrinal, vai se restringindo às crianças. Era natural também que, numa sociedade nominalmente cristã, a “iniciação” fosse feita por imersão no próprio ambiente cultural. Começava então o longo período do catecumenato social no contexto da cristandade que domina todo período medieval, e em muitos lugares chega até nosso tempo. Afinal, todo mundo era cristão, a transmissão da fé se dava no seio da família cristã e na própria sociedade. Nesse clima, o processo de iniciação explícita foi desaparecendo, relegado aos assim chamados “paises de missão”.
O cristianismo, culturalmente disseminado, foi campo fértil para devocionismos variados, sem tanta nitidez de proposta evangélica. Especificamente na colonização de nosso país, apesar do esforço de adaptação e do grande zelo dos missionários, houve mais sacramentalização do que iniciação. As pessoas eram batizadas, faziam primeira comunhão, casavam na Igreja... mas nem sempre se comprometiam com a fé e com a comunidade eclesial. Junto a isso houve o processo histórico que favoreceu a descrença, com a influência do iluminismo agnóstico e ateu, com conflitos mal resolvidos entre ciência e fé, principalmente entre intelectuais e classes dirigentes. A sociedade foi se tornando independente da influência da Igreja e a religião passou a ser vista como assunto privado, pessoal.
Hoje as estatísticas mostram um declínio numérico de fiéis. Os que perseveram na fé, muitas vezes gravitam na periferia da fé, sem atenção e vivência do seu núcleo central: a pessoa de Jesus e seu Evangelho. Aparecida, citando o cardeal Ratzinger, diz: “Nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez” (DAp 12) e constata: “Isto constitui um grande desafio que questiona a fundo a maneira como estamos educando na fé e como estamos alimentando a experiência cristã; um desafio que devemos encarar com decisão, com coragem e criatividade, visto que em muitas partes a iniciação cristã tem sido pobre e fragmentada” (DAp 287).
Por outro lado, vemos tais desafios como oportunidade para promover mais qualidade e entusiasmo na missão [1]. Nesse contexto, um processo consistente de iniciação cristã é indispensável ao tipo de missão que os sinais dos tempos estão pedindo à Igreja.
Às vezes constatamos que alguém passa anos na Igreja, e de repente, a partir em geral da participação em algum movimento (e até mudando de Igreja) diz: “Encontrei Jesus!”. Como? Jesus não estava aqui o tempo todo, na Palavra, na Eucaristia, na Missão? Fica evidente que, mesmo que não tenha faltado a presença de Jesus, algo importante faltou: se a pessoa não encontrou Jesus, de fato não foi iniciada na fé, apesar de ter estado conosco por anos.
A IVC supõe uma comunidade que possa dizer, como Jesus: “Vinde e vede”. Iniciação é inserção na totalidade da experiência de fé dentro de uma comunidade em que se identifica a presença ativa do fermento do Evangelho e a força transformadora do amor de Jesus. O processo iniciático dá grande ênfase aos aspectos litúrgico-rituais; mas ser cristão exige o compromisso com a missão, com a transformação da sociedade e demais dimensões do Evangelho.
Hoje a opção religiosa é uma escolha e não simplesmente tradição e imersão cultural; daí a exigência de formar cristãos firmes e conscientes de sua fé. Ao assumir seriamente a iniciação cristã estaremos entre os primeiros beneficiados: fará crescer tanto evangelizados como evangelizadores e toda comunidade.
De fato, Aparecida constata: “Uma comunidade que assume a iniciação cristã renova sua vida comunitária e desperta seu caráter missionário. Isso requer novas atitudes pastorais por parte dos bispos, presbíteros, pessoas consagradas e agentes de pastoral” (DAp 291). Ora, os processos de uma verdadeira IVC (e não “maquiagens catequético-pastorais” superficiais) são uma maneira concreta de “abandonar ultrapassadas estruturas que não favorecem a transmissão da fé” (DAp 365). Com isso não estamos absolutamente desprezando a ingente renovação da catequese nesses últimos cinqüenta anos... Buscamos, sim, formas mais eficazes!
Mas, o que é de fato a iniciação cristã?É o tema do cap. II.
2. O QUE É MESMO INICIAÇÃO?
Aqui se pretende mostrar que o processo de iniciação, mesmo no nível humano, se faz sempre com relação ao mistério. Iniciação é sempre iniciação ao mistério, é mergulho pessoal no mistério; ele está presente também no centro da fé.
Jesus fala do Reino usandoa categoria de mistério: “A vós é confiado o mistério do Reino de Deus” (Mc 4,11; cf. Mt 13,11; cf. Lc 8,10). O conceito de mistério aparece pouco no Antigo Testamento, mas é muito usado por Paulo, tornando-se uma categoria fundamental para a fé. Foi usado para manifestar o desígnio divino de salvação, que para Paulo se concentra na pessoa de Jesus, sua vida, morte e ressurreição. Paulo contrapõe a “sabedoria humana” à “sabedoria misteriosa” de Deus (1Cor 2,7) e diz que sua missão é fazer conhecer a gloriosa riqueza deste mistério em meio aos gentios.
A mensagem cristã apresentada como mistério leva naturalmente à realidade da iniciação. No nosso imaginário o mistério carrega em si algo de fascinante, sublime, surpreendente. O mistério é um segredo que se manifesta somente aos iniciados. Diferentemente de outros conhecimentos ou práticas, não se tem acesso ao mistério através de um ensino teórico, ou com a aquisição de certas habilidades. Para ter acesso aos divinos mistérios a pessoa precisa, de uma maneira ou de outra, ser iniciada a essas realidades maravilhosas através de experiências que a marcam profundamente. São os ritos iniciáticos tão desenvolvidos na antiguidade e em sociedades modernas secretas ou esotéricas, em geral ministrados a um círculo restrito e fechado de pessoas.
Os cristãos lançaram mão dessa realidade tão humana e arraigada nas culturas, de tal modo que o cristianismo foi até confundido com uma das tantas religiões iniciáticas que pululavam o Oriente Médio. Entretanto, era algo muito mais profundo: para participar do mistério de Cristo Jesus era preciso passar por uma experiência impactante de transformação pessoal e deixar-se envolver pela ação do Espírito. O processo de transmissão da fé tornou-se, sim, iniciático em sua metodologia. Descobrir o mistério da pessoa de Jesus e os mistérios do Reino, assumir os compromissos de seu caminho, viver a ascese requerida pela moral cristã... são realidades muito exigentes; sem um verdadeiro processo de iniciação não se alcança seu verdadeiro sentido.
O catecumenato foi um caminho antigo e eficiente, desenvolvido pelas comunidades cristãs, aprofundado pelos Santos Padres, acolhido e institucionalizado pela autoridade eclesiástica, núcleo do próprio desenvolvimento do ano litúrgico, gerado nesse processo.O valor do mistério de Cristo e da Igreja era experimentado e depois explicado numa vivência marcada pelo rito através de uma catequese chamada “mistagógica” (que inicia ao mistério). O rito, ao envolver a pessoa por inteiro, marca-a mais profundamente do que a simples instrução e interioriza o que foi aprendido e proclamado, realçando a dimensão de compromisso.
Iniciação não é invenção cristã; está na raiz de muitas religiões na antiguidade e, mais ainda, na raiz de quase todas as culturas: antes de ser uma realidade religiosa, é uma realidade antropológica, que as sociedades modernas quase que perderam por completo. Aí, talvez, esteja a nossa grande dificuldade de trabalhar com a iniciação ao mistério: não é uma experiência do nosso dia-a-dia; falta-nos substrato antropológico!
O texto apresenta a descrição e alguns de elementos da iniciação do ponto de vista antropológico e o valor dos ritos. Os processos iniciáticos, profundamente vividos, possuem a capacidade de fazer assimilar vitalmente as grandes experiências cristãs. Mostra também a necessidade de revalorizar hoje esse itinerário iniciático-catecumenal. De fato: numa cultura moderna e quase que pós-cristã (cf CT 57; DGC 110d) a Igreja se vê diante da necessidade de uma real iniciação, para formar cristãos que assumam de fato o projeto do Reino. O Estudo da CNBB Com Adultos Catequese Adulta (2001) afirma:“Aquilo que os ritos de iniciação representam para a vida sociocultural de um grupo, a catequese deveria representar para a vida cristã” [2]: é um processo profundo que integra a pessoa num estilo evangélico de vida.
Daí a necessidade de formas de catequese que estejam verdadeiramente a serviço da iniciação cristã, na complexidade de suas exigências, como bem afirmam o DGC (nos 63-68) e o DNC (no 35 e todo o subtítulo 4.1). Mas a iniciação não é missão só da catequese (aqui está, às vezes, nosso engano!): é trabalho de toda a comunidade, principalmente da dimensão litúrgica e dos ministros ordenados! Sente-se hoje uma necessidade urgente de revisão profunda da nossa prática eclesial, para restabelecer, na sua função primordial, a iniciação cristã.
O Documento de Aparecida é enfático ao falar da necessidade urgente de assumir o processo iniciático na evangelização: “Ou educamos na fé, colocando as pessoas realmente em contato com Jesus Cristo e convidando-as para seu seguimento, ou não cumpriremos nossa missão evangelizadora” (nº 287; cf. 286-294).
A restauração do catecumenato, solicitada pela Igreja (cf. CD 14, SC 64-68 e AG 14), com a devida inculturação, quer retomar a dimensão mística, celebrativa, da catequese, considerando que um dos aspectos essenciais da educação da fé é levar as pessoas a uma autêntica experiência cristã,na integridade de suas várias dimensões.
Teologicamente falando a Iniciação Cristã possui quatro características que definem sua natureza: 1): ela é obra do amor de Deus. A iniciação cristã é graça benevolente e transformadora, que nos precede e nos cumula com os dons divinos em Cristo. 2) Esta obra divina se realiza na Igreja e pela mediação da Igreja. Como corpo de Cristo, coloca os fundamentos da vida cristã e principalmente incorpora a Cristo os que estão sendo iniciados pelos sacramentos da iniciação. Não é iniciação a um movimento ou escola de espiritualidade, embora possam ajudar muito. 3) Este dom de Deus realizado na e pela Igreja tem um terceiro elemento: requer a decisão livre da pessoa. No processo ou itinerário de iniciação a pessoa é envolvida inteiramente em todas as esferas e dimensões do ser. O fracasso ou falta de perseverança no caminho da fé se deve, muitas vezes, à falta deste envolvimento total dos iniciandos. 4) Por fim, a iniciação cristã é a participação humana no diálogo da salvação. É na iniciação cristã que a pessoa começa a fazer parte da História da Salvação.
O terceiro capítulo trata dos processos, descrevendo a dinâmica catecumenal. Palavra e celebração foram importantes para que os primeiros discípulos reconhecessem Jesus como centro de sua vida. São fundamentais para os cristãos de hoje também. O itinerário da iniciação cristã inclui sempre “o anúncio da Palavra, o acolhimento do Evangelho, que implica a conversão, a profissão de fé, o Batismo, a efusão do Espírito Santo, o acesso à comunhão eucarística.” (Catecismo 1229). Temos a consciência de que muitos dos itinerários catequéticos oferecidos aos não batizados e aos batizados de várias idades são fragmentados; mesmo entre os que participam na comunidade e nos movimentos, há carência de itinerários que lhes permitam mergulhar sempre mais no mistério de Cristo e sua Igreja.
O protótipo do processo, da metodologia que conduz à vida cristã é o catecumenato batismal. Nas últimas décadas, a situação pastoral tem feito a Igreja perceber que há também uma necessidade de catecumenato pós-batismal(Catecismo 1231), de grande valor para a iniciação integral de jovens e adultos batizados, mas não suficientemente envolvidos no compromisso cristão.
Aparecida assim descreve o catecumenato: “A iniciação cristã, que inclui o querigma, é a maneira prática de colocar alguém em contato com Jesus Cristo e iniciá-lo no discipulado. Dá-nos, também, a oportunidade de fortalecer a unidade dos três sacramentos... Propriamente falando, refere-se à primeira iniciação nos mistérios da fé, seja na forma do catecumenato batismal para os não batizados, seja na forma do catecumenato pós-batismal para os batizados não suficientemente catequizados. Está intimamente unido aos sacramentos da iniciação: batismo, confirmação e eucaristia... Teríamos que distingui-la, portanto, de outros processos catequéticos e de formação que podem ter a iniciação cristã como base” (DAp 288)
É um paradigma inspirador que deve ser conhecido e valorizado. O modelo de catecumenato apresentado pelo RICA possibilita a elaboração de itinerários diversos, de acordo com as necessidades de cada realidade, conservando o que é essencial e específico. Uma primeira característica essencial é o seu caráter cristocêntrico e gradual. Está a serviço de quem decidiu seguir Jesus Cristo e busca a conversão (cf DGC 89).
O catecumenato é uma função vital da Igreja. Sua responsabilidade é de toda a comunidade cristã. Todo o processo é impregnado do mistério da Pascal. É lugar privilegiado de inculturação, onde são acolhidas na Igreja as “sementes da Palavra” presentes nas pessoas e nas culturas. Garante uma formação intensa e integral, está vinculado a ritos, símbolos e sinais, e está em função da comunidade cristã.
O processo catecumenal, de acordo com o RICA, é organizado em quatro tempos (períodos ou fases) e em três grandes celebrações ou etapas, das quais participam membros da comunidade, parentes e amigos.. A palavra “etapa” aqui significa chegada e conclusão de um período (tempo) e passagem para o seguinte: são momentos fortes marcados por uma celebração específica lançando o catecúmeno para o tempo seguinte. Como se vê no quadro abaixo, por exemplo, embora a celebração dos sacramentos seja um sinal forte na caminhada, esta etapa não é o fim do processo (como comumente fazemos na atual catequese), mas é a “porta” que se abre para a catequese mistagógica, que vai aprofundar a educação para a vivência do mistério:
O texto descreve com detalhes, cada um dos quatro tempos com suas etapas, fazendo sempre a distinção entre catecúmenos (não batizados) e catequizandos (já batizados) e entre esses, os que se encaminham para a primeira comunhão eucarística e confirmação, ou apenas para a confirmação. São eles:
ESQUEMATICAMENTE:
O pré-catecumenato (1º tempo)
Rito de admissão ao catecumenato (1ª etapa)
O catecumenato (2º. Tempo)
Celebração da eleição ou inscrição do nome (2ªetapa)
Purificação e iluminação (3º. Tempo)
Celebração dos sacramentos da iniciação (3ª etapa)
Mistagogia (4ºTempo).
1° TEMPO Pré-Catecumenato ou Primeiro Anúncio (querigma) |
1a. ETAPA - Rito de Admissão dos Candidatos ao Catecumenato (entrada) |
2° TEMPO Catecumenato(tempo mais longo de todos) |
2a. ETAPA - Preparação para os Sacramentos (eleição) |
3° TEMPO Purificação e Iluminação (quaresma) |
3a. ETAPA - Celebração dos sacramentos de Iniciação : Vigília Pascal |
4° TEMPO Mistagogia(tempo pascal) |
Tempo do acolhimento na comunidade cristã
- Primeira evangelização
-Inscrição e colóquio com o catequista.
-Ritos
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Tempo suficientemente longa para: -CATEQUESE – REFLEXÃO -APROFUNDAMENTO. - Vivência cristã, conversão, - entrosamento com a Igreja.
- Ritos
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Preparação próxima para Sacramentos.Escrutínios. Entregas do Símbolo e da Oração do Senhor CATEQUESE - Práticas quaresmais (CF, etc.)
-Ritos
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Aprofundamento e maior mergulho no mistério cristão, no mistério pascal. Vivência na comunidade cristã.
Fim do período Catecumenal. O cristão continua a formação permanente na comunidade, ao longo de toda vida
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Nas etapas (celebrações de passagem de um tempo para o outro) são feitas as entregas que representam os compromissos que vão sendo assumidos, como acontece na entrega da Palavra de Deus, do símbolo da fé (o Credo) e da oração do Senhor (o Pai Nosso). Elas representam também a herança da fé que é passada aos novos cristãos. Outros rituais vão acompanhando o processo: a unção, os exorcismos e os escrutínios.
Apresentam-se também características complementares do catecumenato, como a atenção à formação integral e vivencial, a dimensão orante, a prática da caridade e a renúncia de si mesmos. Para isso a catequese deve ir além do conhecimento de verdades e preceitos através da dimensão bíblica, orante, celebrativa, e relacionar-se profundamente com o ano litúrgico. Há também o acompanhamento dos introdutores, a contribuição dos padrinhos e membros da comunidade, a participação gradativa nas celebrações da comunidade e estímulo ao testemunho de vida. Entre catequese e liturgia deve haver íntima cooperação: elas se reforçam mutuamente no processo catecumenal.
É um modelo inspirador, aberto a adaptações. Em muitos lugares já há experiências que estão pondo em prática o espírito catecumenal da iniciação cristã, com criatividade e adaptação. É um modelo deve ser estudado e aplicado na medida do possível, na ação normal da Igreja: não é restrito a alguns grupos, movimentos, e nem é só para situações especiais ou excepcionais... Ressalta-se que esse processo, seriamente assumido, traz grande renovação e qualidade para a vida paroquial.
A importância que se dá à dimensão orante-ritual-celebrativa não pode deixar esquecidos outros aspectos da pastoral.
Não se pode implantar um processo com esse nível de exigência sem a correspondente preparação e contínua reflexão e revisão de vida dos agentes, de todos os níveis, e sem uma grande atenção à qualidade do testemunho da comunidade inteira. Um catequista que não passou pelo processo catecumenal dificilmente irá desenvolvê-lo eficazmente.
O processo catecumenal pode ser aplicado aos diversos trabalhos de formação continuada que já existem nas comunidades, aprofundando a missão evangelizadora (encontros de preparação para o matrimônio e batismo...).
No quarto capítulo os destinatários da iniciação cristã são considerados como interlocutores, assim como Jesus tratou a samaritana e tantos outros, iniciando-os em seu divino mistério. Como a samaritana, deparamo-nos com um povo sedento, que procura a fonte, que quer uma água que sacie sua sede de um modo diferente... É uma multidão, com rostos variados que precisam ser reconhecidos, identificados, personalizados. Destes, muitos procurarão na igreja uma resposta para suas buscas; outros convivem com sua sede sozinhos, ou vão à procura de outras águas ou nem se dão conta de sua sede. Nós mesmos os buscaremos no trabalho missionário. E cada um tem que ser considerado na sua realidade humana.
Diversas são também as motivações dos que procuram a Igreja. Nem sempre estão buscando (ou até nem imaginem que exista) um processo mais completo de iniciação. Boa parte dos adultos católicos foi evangelizada e catequizada insuficientemente. Alguns, depois, se aprofundaram e tiveram outras experiências evangelizadoras; outros guardam só uma vaga lembrança do que aprenderam na infância, outros se decepcionaram pelo caminho, muitos se perderam no meio dos apelos da cultura pós-moderna.
É necessário conhecer bem a situação de cada candidato à iniciação, porque a proposta a ser apresentada deve ser resposta à “sede” que cada um experimenta com mais intensidade. Daí a necessidade de uma iniciação diversificada, com itinerários especiais. Citando o cap. VI do DNC são elencadas as seguintes situações, com um comentário sobre cada uma:
a) Adultos e jovens não batizados;
b) Adultos e jovens batizados que desejam completar a iniciação cristã;
c) Adultos e jovens com prática religiosa, mas insuficientemente evangelizados;
d) Pessoas de várias idades marcadas por um contexto desumano ou problemático;
e) Grupos específicos, em situações variadas;
f) Adolescentes e jovens;
g) Crianças não batizadas e inscritas na catequese;
h) Crianças e adolescentes batizados que seguem o processo tradicional de iniciação cristã;
Se não se consegue ainda uma renovação total do modelo de iniciação cristã tradicional, sempre será possível ir aos poucos dando um caráter cada vez mais catecumenal à catequese,com o objetivo de formar discípulos e missionários.
[1] Nosso projeto Brasil na Missão Continental fala em “aproveitar intensamente esta hora de graça”. Vê as dificuldades como provocações a um santo e criativo crescimento. Cf Cnbb. Projeto Nacional de evangelização: o Brasil na Missão Continental. São Paulo: Paulinas 2008, n.88.
[2] Cnbb- Grecat, Com adultos, catequese adulta: texto base elaborado por ocasião da 2ª Semana Brasileira de catequese- Estudos da CNBB 80. São Paulo: Paulus 2001, nos 102-103.